"Loving you feels like a kick in the balls..."

   Eu já escrevia para você, antes mesmo de saber escrever. Inventei um alfabeto exclusivo e com ele lhe escrevia dezenas de cartinhas, todos os dias.
   Depois de alfabetizada, eu continuei escrevendo, e você já não precisava mais que eu “traduzisse” o que eu queria dizer. Desenhos pessimamente coloridos e uma caligrafia lamentável empregados em pedaços de papéis amassados, que hoje recheiam suas gavetas, embatumando-as.
   Quanto tempo faz desde a última vez que escrevi para você ? Por que eu passei tanto tempo sem escrever ?
   Acho que eu nunca tinha algo pra te dizer realmente. Eu começo a escrever, e as palavras somem. Silêncio. Vazio. E, sempre que abro minha boca com sinceridade, também o faço com gana, minhas palavras saem cruas, saem pelas metades, inexplicáveis, e eu machuco você, e empilho mais um pouco de arrependimento sobre minhas costas. Entre falar e me arrepender, e o silêncio, eu prefiro o segundo. Fico quieta, então. Calada e inexpressiva.
   Contudo, agora, talvez, eu tenha algo para falar, algo realmente preciso.

  
   Eu realmente odeio ter crescido. Ninguém mais consegue ser perfeito para mim. Eu vejo detalhes de hipocrisia e egocentrismo em tudo e todos. Ter crescido, para mim, significa ter passado a odiar o mundo em que vivo. Ter crescido significa, hoje, enxergar este mundo podre, com toda a podridão que lhe pertence, enxergar falsidade e crueldade em cada uma das criaturas racionais que o habitam, inclusive e especialmente em mim mesma. Ter crescido significa ter percebido que a perfeição não existe, ter percebido que eu nunca serei boa o bastante para a maioria das coisas. Ter crescido significa ter percebido que tudo, absolutamente tudo tem dois lados, que são igualmente pesados, e que eu preciso sempre optar por um deles, pois eu nunca serei forte o bastante para carregar ambos. Ter crescido significa ter um monte de caminhos, ter que fazer milhões de escolhas que só me levam a mais escolhas para serem feitas, mais indecisão, mais erros, mais vontade de voltar no tempo, mais arrependimento, e, às vezes, felicidade às avessas.
   Crescer, realmente, é uma merda. Antes eu só me preocupava com os finais que minhas histórias teriam. Brincava com meus bichos de pelúcia da promoção da Guaraná Antártica, brincava com minhas Barbies e Pollys. Eu gostava de ler, eu brincava na rua com meus vizinhos de Harry Potter, Pokémon e outras bizarrices. Eu era pura e totalmente feliz. Hoje, parece que só consigo migalhas de felicidade, sempre acompanhadas de aflição e lástimas. Hoje, ser feliz tem um preço, que parece não mais valer a pena. Hoje eu tenho que usar meios apelativos para preencher minha cabeça e não pensar besteira demais, para não fazer besteira demais. Eu consigo passar a tarde deitada, no escuro, com meus fones de ouvido tocando as mais variadas músicas; eu arrumo um novo animal de estimação apenas para ter que me ocupar com ele, alimentá-lo e conquistá-lo, apenas para me distrair e não pensar demais. Agora que cresci, não consigo deixar de tomar cuidado com tudo, nem mesmo com meus pensamentos. É horrível, é esgotante… É inevitável. Eu não posso mudar. Agora que eu cresci e aprendi a pensar sozinha, a formar minha opinião por mim mesma, eu não consigo simplesmente me ignorar e levar minha vida da forma como você deseja. Eu sei, acabei de dizer que controlo (ou pelo menos, tento controlar) meus pensamentos, mas eu o faço de acordo com a minha vontade, observando o que é mais prudente e conveniente de se fazer. Eu não poderia mudar a pessoa que eu sou, mesmo que eu quisesse. Não posso mudar minha forma de pensar e agir, mudar conforme seus desejos. Não posso ser um bebê frágil e indefeso num segundo, e depois virar uma mulher forte e determinada no outro.
   Eu observo a forma como você age. Às vezes, eu paro de me esquivar e penso em suas atitudes. Eu acho que existem dois tipos de pessoas: as que se moldam, mudam, esquecem-se da própria dignidade e princípios, pelas pessoas que gostam; e as que dão os moldes, imutáveis, teimosas, “cabeças-duras”.
   Você sabe, obviamente, muita gente (principalmente eu) erra contigo. O tempo todo. Erros absurdos, erros miúdos, erros, de um jeito ou de outro. Mas, você já pensou que você também erra ? E que, às vezes, seus erros são abomináveis ? Você já pensou que muitos já te perdoaram por ter dito ou feito algo, mas que, se fosse o contrário, se eles tivessem errado com você, você não os perdoaria ? Já reparou que você comete erros que você mesma considera imperdoáveis, mas, que você é perdoada assim mesmo ??
   Não estou dizendo que todo o seu esforço em ser boa, em proteger, em estabelecer ordem, não tenha valor. Mas existem meios mais prudentes, formas de agir diferentes, que não desgastam tanto a relação entre uma família. Nós todos temos que mudar, todo o tempo, admitir erros e apontá-los com delicadeza.
   Você já pensou que você é um ser humano, e se engana, e entra em contradições por muitas vezes ? Já pensou que, nem tudo o que você diz é lei ? Que você não está certa o tempo todo ? Que ninguém está sempre certo, e que é por isso que as pessoas mudam ? Que você precisa mudar, mudar sua forma de agir em certos momentos, rever algumas opiniões, alguns conceitos ? Você já pensou que, se você não mudar por “nós”, “nós” também não mudaremos por você ? Já pensou que, se não mudar, você vai continuar machucando e sendo machucada, e que, um dia, essa situação pode ser tão insuportável que poderá ser tarde demais para arrependimentos e pedidos de desculpas ??

   Eu já não conseguia mais guardar isso dentro de mim. Esses pensamentos desconexos não me deixavam em paz há muito tempo. Eu sei que, mesmo tendo escrito para você, você não lerá, apenas por não ter a chance.
   Uma última coisa: eu amo você, e não tenho intenções de magoá-la.


"Everytime we get up we'll be destined to fall / And I'm asking myself, is it worth this at all? / Every corner we turn we just run into walls / Because loving you feels like a kick in the balls" McFly - Only The Strong Survive

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