Nona

   Nem seus cabelos cacheados tão cumpridos nem o timbre agudo da voz dela eram tão marcantes quanto seu olhar, o jeito que seus olhos passeavam no ambiente, atentos a tudo e todos. Loucos olhos - o azul claro e profundo da íris, em contraste com a pupila, dava-lhe um ar único de loucura, mas, mesmo com esse jogo de cores, o olhar dela nada seria se não perambulasse tão loucamente.
   Ingressou em uma nova família, puramente por conúbio, nunca foi santa muito menos querida. Fora completamente renegada apenas mais tarde, quando a loucura já não estava apenas em seus olhos, mas em tudo o que fosse ela.
   Por anos e anos, ela pôde encontrar uma vivência próxima de “família” apenas em sua própria loucura – seus “irmãos” e “irmãs” de Igreja, tão loucos quanto ela. Por anos e anos esteve afogada em insanidade, julgada e injuriada, ainda que não o soubesse, afastada de sua família; ela não pôde cuidar dos filhos como queria, nem pôde ser mulher para seu marido por muito tempo… Nem o casamento resistiu a loucura.
   Maus pensamentos sobre ela partiam de todos da família do ex-marido; os filhos, porém, sofreram apenas com sua ausência, relevando seus erros, absurdos até para a enorme cota de erros que um humano pode cometer.
   O filho mais velho casou-se, assim como a filha do meio o fez, logo depois. Ambos enlaces aconteceram recentemente, assim como recentemente ela começou a demonstrar que sua loucura já não a dominava mais… Não tão completamente.
   E sendo assim, ela passou a freqüentar a casa dos filhos que, mesmo crescidos, não passaram a precisar menos de uma mãe quanto precisaram antes.
   Hoje, é possível vê-la sempre por perto, sentada sozinha, em um canto menos iluminado. Ainda que toda vez que ela chegue seja possível ouvir sussurros do tipo “o que ela veio fazer aqui ? Ela nunca foi mãe pros filhos dela…”, mesmo que sua presença seja ignorada e repugnada por muitos, mesmo que ninguém seja capaz de admitir que sua loucura já não é mais um atrapalho, já que ela tornou-se tão normal quanto eles, ou eles tornaram-se tão insanos quanto ela…

    A última vez que reuniram a família, ela estava sentada, no lugar de costume, admirando a roupa de bebê que havia comprado para sua netinha recém-chegada. Ninguém lhe dava atenção, apenas a filha que, às vezes, passava e servia-lhe algum tira-gosto.
    Seus olhos fugazes dançavam pelo teto e pelas pessoas, pela roupa de criança, pelas próprias mãos, pelo portão da casa nova, ainda com cheiro de tinta, porém um cheiro que não ardia mais. Um sorriso sempre pintado em seus lábios, loucos como os olhos; quase os únicos traços de loucura que ainda restavam em seu físico.
    Seus olhos pousaram enfim, no homem que a havia posto naquela família, o chefe, aquele que fora pai e mãe diante da inaptidão dela, aquele com quem ela dividia, ainda que indiretamente, a felicidade de ser avó.
    Estáticos, arregalados, loucos olhos, concentraram-se nele apenas. Ela levantou-se desajeitada, arrumou a saia cumprida, que aliás, é mais um resquício de sua loucura, e arrastou sua sandália gasta, andando rapidamente até ele, o pegando pela mão e o levando até seu canto particular, a mesa distante da festa, do churrasco de domingo.
    Contou animada sobre os planos que tinha, sobre a netinha que havia acabado de chegar, e o netinho que já estava por vir, mostrou a roupa de criança, o quão graciosa era, de fato. E não apenas a roupa, aquele pedacinho de pano colorido e cheio de rendas, mas também o jeito dela, da vovó empolgada.
    Apenas escutando-a, com suas tantas palavras misturadas, enroladas, dizendo sobre nada e tudo ao mesmo tempo, ele sentiu algo, e porquê sentiu não conseguiu entender. Ele apenas amou quando ela o fez perceber que aquele sorriso simpático e delicioso era direcionado a ele, por estar com ela.

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