…??

   Aquilo tinha que ser feito naquela noite. Na noite mais fria, mais negra de minha existência. O motivo era um só...
   Já estava escuro e ela corria pela rua suja. Aquela rua longa e cheia de becos que não levavam a nada, aquela rua sem saída. Ela tentaria evitar a todo custo, o tempo que fosse possível.
   Ela corria com todas as forças, tentava puxar todo o ar que conseguisse, eu quase podia sentir seus pensamentos de pânico, sua cabeça trabalhando rapidamente, concentrando-se em achar uma saída, concentrando-se em correr, concentrando-se na dor. Ela evitaria tudo, voltaria no tempo, se ela pudesse, se ela soubesse... Mas agora já não havia saída, não tinha outro jeito e tinha que ser ali, naquela noite, naquele momento. Ela sabia.
   Finalmente a encurralei em um beco que terminava com uma grade que separava a calçada pobre e destruída de um gramado alto e escuro. A noite úmida, a lua minguante vagava solitária no céu sem nuvens, sem estrelas, nos assistindo. Terror nos olhos dela.
   Eu sabia que ela sentia que seu fim estava ali, diante dela, olhando-a com os olhos famintos e admiradores, estava ali, impedindo-a de tentar qualquer coisa, oferecendo-lhe apenas a morte, irrecusável. Um futuro incerto diante dela, inevitável e assustador. Receio, dúvida, medo. O que todos sentiam quando aquela hora chegava. Me aproximei vagarosamente, fitando-a. Ela estremeceu e gritou uma última vez, tentou respirar. Eu sorri.

***                       ***                       ***                       ***                       ***

   Acordei no início da noite, com os pingos de uma chuva gelada. Por alguns minutos fiquei contemplando a minha dor, tentando entender o que tinha acontecido. Por algum tempo, eu só permaneci esticada no chão, sem nem tentar me mexer, minhas pernas doídas, como se eu tivesse corrido na maratona. Passado o tempo eu passei a mão pelo meu braço e a levei até meus olhos vagarosamente. Um choque, uma sensação de horror. Sangue fresco brilhava refletindo o sol que se punha devagar.
   Mais um tempo se passou e comecei a me levantar. Minhas pernas estavam dormentes. Me apoiei na grade em minha frente, ainda sem me lembrar de nada. Um calafrio me correu pela espinha, a chuva começava a apertar, o sol já havia sumido. Havia apenas algumas estrelas no céu para me assistirem. Não encontrei a lua.
   Vagarosamente, andei até a rua do começo do beco. Estava vazia, suja, mal iluminada. Minha cabeça doía apenas com meus pensamentos então eu me concentrei apenas em andar sem cair. Andei em direção a algumas luzes e cheguei ao centro. As pessoas se afastavam de mim de forma rápida e indiscreta. Avistei uma pequena porta com o símbolo de banheiro público e resolvi checar o quão horrível eu estava. Havia uma mulher lá dentro, mas assim como todos, ela se assustou e saiu rapidamente. Eu me virei para o espelho com os olhos fechados, com medo de me encarar, com medo do sangue que eu havia visto outrora.
   Me forcei a olhar para mim mesma. Cabelos desarrumados, olheiras profundas e roxas, nariz inchado. Meu pescoço com um enorme corte percorrendo-o, me fazendo estremecer. O sangue que não coagulava de jeito nenhum. Roupas rasgadas e molhadas, sujas, manchadas de sangue, lama, terra. Encarei meus próprios olhos no espelho. Senti como se já os tivesse visto, como em outra pessoa. Então de repente, eu me lembrei.
   Me lembrei do jeito que ele me olhava. Como se soubesse me entender. A rua suja, os becos escuros, a grade, o pânico, o medo, a dor. De repente, pude identificar o dono do olhar faminto, tão parecido com o meu agora.

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