A Última Madrugada

O vento gélido alvoroçava meus cabelos, presos próximos a minha nuca, ao passo que soprava gentilmente nos fios de cabelo dela, iluminados pela luz do sol que ainda estava nascendo. Ela estava parada, diante de mim, elegante e simples, como sempre foi. Encarei meu reflexo no manancial.

Aproximei-me e pude perceber seu olhar distante e cansado, o corpo levemente curvado para frente. Pensei em tudo o que ela havia granjeado... Era natural que estivesse fatigada. Entretanto, ela desejou me acompanhar.

Deitei meus olhos no tremor de seus lábios devido ao frio típico de todas as madrugadas de nossas vidas, descendo-os para observar o manto azul claro que a cobria, e os seus dedos entrelaçados em um pedaço desfiado da manta, que brincavam da mesma maneira que gostavam de brincar entrelaçados em meus cabelos

Enlacei nossos braços como nas vezes que caminhávamos pelas ruas e esquinas, contando nossa passada e rindo de situações que éramos submetidas, rindo de todos... Rindo da vida.

Caminhamos silenciosamente, da forma como ela deixava escapar seu padecer, seguindo em direção à trilha, regressando ao aconchegante calor do chalé. Ela acomodou-se no sofá enquanto eu abria as janelas, que nos proporcionavam uma vista ao manancial de onde voltamos. Seus olhos se fecharam e ela adormeceu. A última palavra foi eximida.

Agora encaro aqueles olhos fechados, como os encarei naquela madrugada gelada. Uma leve maquilagem em seu rosto delicado, seu corpo tão esbelto, petrificado. Observo-a com olhos de quem observa parte de si. Recordações de nossa infância, e de toda a nossa vida, inundaram minha mente, e de repente, me pareceram bruscamente rompidas. Vozes de pessoas ao fundo: “Não há nada que apague uma verdadeira amizade”.

Observei uma última vez, minha confidente, como se observasse todos os momentos tão importantes e inesquecíveis de minha vida. A companheira tão precisa. Lembro-me de suas lamentações e suas queixas sobre as mudanças repentinas em sua vida, que cada vez mais se refletiam em seu corpo.

Agora, não há mais ninguém para guardar minhas confidências. Agora ela está inerte, sem vida. Os membros enrijecidos. Agora ela não pode mais flertar com aquele moço bonito, não pode me fazer rir com seu bom humor constante, nem me contar detalhes do episódio de novela que eu perdi.

Ela não poderá mais enxugar meu pranto, toda vez que eu pensar saber o que é sofrer. Lágrimas tolas as minhas. Ela não poderá mais lançar-me aquele olhar cúmplice e nem dividir comigo os últimos farelos de biscoito. Todavia, ela sempre será perfeita para mim.

01,12,09-19.58

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Saudade das Folhas

Ano Três